domingo, junho 07, 2015

Conservação contra Darwin

Advertência: temporariamente, e por acasos da vida, sou presidente de uma associação de conservação, a Montis (clicar para saber quem somos e o que queremos), mas gostaria de deixar bem claro que as minhas opiniões são apenas as minhas opiniões, muito diferentes, aliás, das opiniões, sobre os mesmos assuntos, de muita gente na Montis, incluindo nos seus órgãos sociais. O que nos junta é o facto que querermos fazer gestão directa de terrenos com objectivos de conservação, economicamente sustentada e de forma transparente e participada, não são as ideias que cada um de nós tem sobre as políticas de conservação, que, com muita frequência são muito diferentes e por vezes antagónicas entre as pessoas que se juntam na Montis.

Mapa dos movimentos de dois linces soltos no âmbito de programas de conservação da espécie

Várias conversas cruzadas sobre a conservação do lince, com várias pessoas diferentes, levam-me a fazer um ponto de situação sobre o que penso do assunto, neste momento.

É um assunto velho, já amplamente discutido neste blog, por exemplo aqui.

Nessa discussão assume um papel relevante a coincidência temporal entre o aumento da população de lince e os investimentos na sua conservação, em especial o faraónico programa de cria e solta de animais.

Sempre disse que essa coincidência era muito imperfeita (a recuperação do lince começa antes dos investimentos) mas sobretudo disse que as pessoas que assumem que a recuperação do lince se devia às suas acções de conservação iriam estar numa posição delicada quando a doença seguinte do coelho fizesse diminuir as populações de lince, apesar dos investimentos em conservação.

Esse é o ponto em que estamos, quando aflitas com os miseráveis resultados dos últimos anos, as mesmas pessoas que garantiam que a recuperação se devia às suas acções de conservação, fogem agora de fazer uma de duas coisas adultas e responsáveis: 1) assumir que afinal a recuperação do lince era essencialmente uma função da dinâmica da população de coelho e portanto insistir em largar bichos é uma perda de tempo e dinheiro; 2) assumir que a actual tendência de declínio dos linces se deve às suas acções.

O que me espanta é que se negue a teoria que está na base das críticas que eu (e não só, mas não somos muitos) faço ao programa de reintrodução ou reforço das populações de lince a partir da cria em cativeiro.

Na minha tese está este gráfico que fiz a partir dos dados oficiais sobre a evolução do número de linces na Andaluzia:


O que o gráfico mostra a resposta clássica de uma população à súbita escassez de recursos tróficos, no caso, a repentina escassez de coelho motivada por uma doença.

No primeiro ano em que os efeitos da doença na disponibilidade de presas para o lince se fazem notar, a população total mantém uma tendência de crescimento mas o número de crias diminui, mergulhando rapidamente depois. Só então os efeitos se fazem sentir na população global: diminuição do número total de animais e, o que não é possível ver no gráfico, diminuição da densidade de linces por aumento da área de distribuição e alargamento dos movimentos dispersantes.

Fenómenos do mesmo tipo estão descritos para outras populações, nomeadamente para a população de lobo e são coerentes com uma visão evolucionista da dinâmica das espécies, comandada, em grande medida, por disponibilidade trófica e doenças.

Perante estes factos há quem esteja a fazer reforços das populações de coelho e vacinações para manter níveis tróficos que garantam a sobrevivência das populações de lince, ao mesmo tempo de soltam linces criados em cativeiro.

Esta é uma abordagem pré-darwinista para a gestão do problema, com efeitos provavelmente negativos no tempo de resposta das populações à presença de doenças devastadoras.

Directamente à população de lince o melhor seria não fazer nada, mas a fazer alguma coisa o mais razoável seria capturar linces e mantê-los vivos alimentando-os artificialmente em vez de reforçar a competição por recursos escassos através da introdução de animais que poucas hipótese terão de produzir descendência viável. Na verdade a pressão trófica vai actuar sobre a produtividade das fêmeas e, de forma mais acentuada, sobre a mortalidade e viabilidade das crias nos primeiros dias de vida, para além da dispersão dos animais, diminuindo a sua densidade no território, diminuir a probabilidade de contacto sexual (como acontece com o lince solitário que está no litoral alentejano há dois anos, vivo, bem alimentado, em boas condições, mas irrelevante para a conservação da espécie por ausência de fêmeas que permitam a reprodução).

No caso da população de coelho, usar vacinação é um desastre (tal como os reforços populacionais de populações de coelho). A vacinação protege indivíduos e, no caso de populações em que os nascimentos são todos controlados (tipicamente as populações humanas ou de explorações pecuárias), pode ser usada para erradicar doenças ao impedir o seu desenvolvimento em qualquer indivíduo.

Mas usada para populações selvagens apenas significa que estamos a prolongar artificialmente a viabilidade de indivíduos a quem conferimos resistência à doença através da vacina, e que vão competir com os outros por recursos e reprodução, ocupando espaço e consumindo recursos, ao mesmo tempo de produzem crias não resistentes à doença.

Nesse sentido, ao adiar a morte por doença desse indivíduo estamos a prolongar a prevalência e efeitos da doença, ao contrário do que deveríamos procurar fazer: limpar a população de coelho, através da morte dos indivíduos não resistentes à doença, o mais rapidamente possível, permitindo que os individuos resistentes se tornem dominantes (processo que demorará mais tempo se os genes que conferem resistência forem recessivos).

O mesmo acontece quando se fazem reforços de população de coelho, com animais não resistentes, para sustentar a população de linces, prolongando a fragilidade da população de coelho face à doença.

Na verdade o que deveríamos estar a fazer é investir todos os recursos possíveis na criação de condições para que os coelhos de reproduzam o mais possível, não nos preocupando com os muitos que iriam morrer por falta de resistência à doença, mas aumentando a probabilidade de haver um maior número de indivíduos resistentes. Poderíamos fazer a selecção genética de animais resistentes para reforçar as populações de coelho, até com métodos relativamente simples de ter animais em cativeiro expostos à doença, dos quais grande parte morreria por falta de resistências, e seleccionando os resistentes para reprodutores e para reforços da população de coelho.

Não tendo eu qualquer objecção à caça (ver, por exemplo, aqui) acho que esta é uma das situações em que se justificaria adoptar uma moratória em relação à caça ao coelho, não porque me preocupe o número de coelhos que são mortos pelos caçadores (não são os que morrem que me preocupam na conservação das espécies, mas os que nascem e se mantêm vivos até à idade reprodutiva) mas porque a caça mata indistintamente indivíduos com resistências e sem resistências, na melhor das hipóteses, mata preferencialmente indivíduos resistentes à doença, na hipótese mais provável, atrasando o processo de substituição de reprodutores não resistentes por reprodutores resistentes à doença.

E é isto, são estes os meus argumentos para não apoiar as actuais políticas de conservação do lince porque, para além de caras e ineficazes (como contribuinte sinto-me simplesmente roubado), a sua probabilidade de êxito é directamente proporcional à probabilidade de Darwin estar errado.

E eu ainda confio mais em Darwin que nos decisores de políticas de conservação para tentar perceber e gerir a conservação de espécies.

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